domingo, 27 de abril de 2008

Um anjo que cai


Quando fiquei sem lembrancinha naquela festa de aniversário e vi as demais crianças com as suas, inclusive meus dois irmãos pequenos, pus-me a chorar. Quis pegar a lembrancinha do meu irmão bebê, mas minha madrasta não me permitiu e ainda foi ríspida comigo. Me revoltei. Recorri ao meu pai: bati os pés no chão e exigi que ele me desse a lembrancinha do neném. Quando pensei que meu pai faria minha vontade, ele brigou comigo e ainda me deu uma bofetada. As pessoas focaram olhando. Ele me largou e me ameaçou: quando chegar em casa, você vai ver...

Fiquei o resto da festa amuada e com saudades de minha mãe. Tinha certeza de que, se ela estivesse ali, daria um jeito de me arrumar uma lembrancinha. Aliás, só pensava em voltar para a casa de minha mãe.

No caminho de casa, ainda muito zangada, afirmei, repetidas vezes, que não queria voltar pra casa deles e sim para a de minha mãe. E já dentro do carro acabei batendo no meu outro irmão, pois ele exibia os seus bombons e brinquedos e não me dava nenhum. Foi quando minha madrasta me puxou pelos cabelos e me bateu na cara. Doeu muito e senti o sangue escorrer. Gritei pelo socorro de meu pai, mas, para meu espanto, ele ordenou que a mulher me batesse mais, alegando que eu era malcriada e merecia uma surra.

Tentei gritar, mas não pude, pois a madrasta possessa me batia e me apertava o pescoço com tanta força e eu perdi a voz e não pude mais respirar. Foi um sufoco... uma agonia... De repente, tudo se acalmou e o pesadelo passou. Parecia que eu estava em um sono profundo. Mas, de alguma forma, percebia o que acontecia. A mulher, que há pouco me espremia o pescoço, pareceu desesperada. Meu pai parou o carro e foi ver o que acontecera no banco de trás. Quando me viu ficou apavorado também. Botou as mãos na cabeça e parecia esbravejar com a madrasta. Confesso que achei bom percebê-los assim. E só pensei em contar tudo pra mamãe...

Depois, quando me dei conta de novo, ela, a madrasta, limpava meu rosto com uma fralda e meu pai me carregava nos braços. Colocou-me na cama e ambos começaram a cerrar a rede de naylon da janela. Em seguida, me pai me ergueu novamnete e, com cuidado, me passou pelo buraco da rede. Será que ele queria que eu voasse?! Mas, caí... e não lembro de mais nada.

Crônica de Simone Pessoa, no jornal O Povo do dia 27/04/08

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